Capítulo 5

Capítulo 5 | Ser Criança é viver

O sol já estava baixo, quando Beatriz, sua família, os porquitos e a cadela, se aproximavam de um amontoado de casas abandonadas no meio do nada. Após terem atravessado o rio, a jornada em direção às Areias (o monte onde iriam ficar mais tempo e onde o pai de 


Beatriz iria falar com o novo patrão), estava a correr bem e sem grandes percalços. Beatriz, sentia-se um pouco engripada e o seu corpo pedia-lhe para parar. A brisa suave que, de vez em quando lhe acariciava o rosto, dava-lha alento e força para continuar. Mas ao ver as casas e uma possibilidade de pernoitarem por ali, Beatriz tenta convencer o seu pai dizendo-lhe:
- Paizinho, estou muito cansada, e dói-me o corpo todo… podíamos ficar esta noite aqui!???
- Minha filha, estas paredes e tetos não estão seguros. Com o último temporal ficaram ainda mais frágeis, podendo cair a qualquer momento.
- Não vão cair paizinho, tenho a certeza que será um bom sítio para descansar a noite. Temos que confiar! Lembras-te?! (diz Beatriz com ar de espertalhona e meio traquina, como quem ganhou um ponto).
- Sim minha querida filha, não te esqueces de nada! – Responde-lhe o pai enquanto lhe passa a mão pela cabeça, num gesto de validação e reconhecimento.

Antónia apenas escuta a conversa e sorri, enquanto permanece ao lado de sua mãe. Beatriz olha para a sua irmã e espera um gesto ou uma palavra, mas nada surge. Aproxima-se dizendo-lhe:
- Olha lá, que se passa contigo que estás tão caladinha? Já tenho saudades das tuas resmunguices e piadas… parece que deixei a minha irmãzinha do outro lado do rio… (enquanto a vai tocando na barriga fazendo cócegas tentando que ela se risse)
- Deixa-me em paz fedelha! Está tudo bem. Vamos lá guardar os porquitos onde possam ficar bem abrigados. Daqui a pouco temos de fazer os camalhos. (Camalhos é o nome que se dá no Alentejo, às camas improvisadas feitas no chão). Já agora, gostei da ideia de ficarmos aqui! (e levanta a mão direita para chocar com a mão direita da Beatriz num ato de concordância e sintonia)

Beatriz corre e brinca com a cadela e o inseparável sala-pocinhas na direção de um recanto onde parecia ter existido uma fogueira gigante. Vários troncos bem posicionados pareciam indicar que antes alguém esteve naquele lugar abandonado. ‘Teria sido uma festa? Teria sido um ajuntamento de trabalhadores? Será que o rapaz da galinha também esteve ali?’ – questionava Beatriz indignada e perdida nos seus pensamentos.

De repente ouve um choro ao longe. Repara que Antónia se tinha afastado um pouco e estava a soluçar. Que se teria passado?
- Que se passa maninha?! Porque choras!? - pergunta Beatriz correndo na direção da irmã
- Beatriz chama a mãe depressa!!! -  diz Antónia chorando, enquanto mostra a mão suja de sangue à irmã.
Beatriz, assustada corre a chamar a mãe.
- Mãe, oh mãe, a Antónia está com sangue e está a chorar atrás daquela rocha… vai lá depressa! Correm as duas na direção de Antónia.
- Minha filha que se passa!?
- Mãe… senti qualquer coisa estranha, pensava que era xixi e é sangue….
- Oh minha filha – abraçando-se à sua filha – parabéns já és mulher!

Fez-se silêncio uns segundos… Beatriz um pouco afastada olha preocupada e sem saber muito bem o que fazer e o que se estava a passar com a irmã.
E Antónia pergunta:
- Mãezinha, e agora? O que vai acontecer comigo? Nunca mais vou voltar a ser criança como a Beatriz!?
- Minha filha, tudo na vida tem um princípio e um fim. Tiveste o teu tempo e continuarás a tê-lo. Ser mulher não quer dizer que percas a tua criança…

Senhorinha faz sinal a Beatriz para se aproximar e pede-lhe para trazer o pedaço de trapo limpo, que tinha guardado no alforge desde o início, como se já soubesse que isto iria acontecer um dia. Além disso, explica a Antónia o que fazer e como fazer, sempre que isto acontecer. Antónia estava a viver pela primeira vez a experiência da menstruação.

Beatriz traz o trapo com todo o cuidado, como a sua mãe lhe pediu e afasta-se novamente com ar preocupado pensando para com os seus botões: ‘- Que será que se está a passar com Antónia!? Será que ela não vai mais brincar comigo, agora que é mulher?! Será que ela não vai ser mais criança como antigamente?’ Entretanto uma suave brisa acaricia o seu rosto incentivando-a a falar em voz alta:
- Sr Vento, tu que sabes tudo, diz-me o que é ser mulher… diz-me o que está a acontecer com a minha irmãzinha…
Beatriz abre os braços e fecha os olhos. A cadela e o salta-pocinhas aproximam-se. Começa a cantarolar sons sem sentido para o vento, para os animais e para o céu e terra. Era como se de repente tivesse percebido, quão bom é ser criança! Rodopia sobre si mesma até cair estatelada no chão a rir, meia enrolada com o salta-pocinhas e a cadela que aproveita para lhe lamber o rosto.
Antónia aproxima-se. Deita-se no chão bem junto de Beatriz. Esta, que não tinha dado pela sua irmã, assusta-se, e surpreendida abraça-a de seguida. E ficam ali as duas agarradas, estendidas no chão com o salta-pocinhas e a cadela. Os seus pais observam sorrindo aquele cenário do alto do cabeço.

Beatriz é a primeira a quebrar o silêncio dizendo:
- Já viste maninha, se fossemos um pássaro, ou uma árvore, ou uma flor, não éramos tão chatos, não teríamos tantos problemas, não achas?
- Sim Beatriz. Mas pelos vistos somos pessoas. Pessoas que mudam… e vão crescendo… Mas como tu própria dizes, quando falas com o vento e danças com a terra, tudo fica mais leve e volta ao lugar – podes ensinar-me?
Beatriz levanta-se com um ar surpreendido e até quase emocionada dizendo:
- Oh maninha linda, foste tu que um dia me ensinaste a dançar e a falar com o vento. Foste tu que me mostraste que aconteça o que acontecer, o melhor é rir, dançar e ser feliz! Como te esqueceste disso?!
- Não me esqueci Beatriz, só já não sei como começar… parece estranho…

Beatriz levanta-se e agarra nas mãos da sua irmã incentivando-a a levantar-se. Coloca-se de pé à sua frente, ajusta as suas mãos com as da irmã, inclina ligeiramente o corpo para trás e com um olhar traquina e de criança feliz incentiva Antónia a fazer o mesmo, para de seguida rodopiarem alegremente. Permanecendo com o olhar uma na outra, riam, gritavam. A cadela ladrava e o salta-pocinhas sentado olhava.

Pela primeira vez, as duas desfrutaram em simultâneo da criança que nelas habita. Ambas haviam aprendido uma lição naquele dia - afinal a criança é eterna e pode ser trazida ao momento presente, sempre que quisermos – basta querer! J
(continua)

Nenhum comentário:

Postar um comentário