O sol já se escondia, quando
Beatriz e a sua família chegaram aos primeiros cercados do Monte das Areias. A
escuridão da noite começava a tomar conta do lugar.
Todos estavam muito cansados,
à exceção de Beatriz que, após terem passado o grande lago das rãs e à medida
que se iam aproximando do monte, parecia ter recuperado do cansaço. Ela sabia
que se aproximava do local onde, possivelmente iria a ver o Zé – o rapaz da
galinha.
Já era noite. Os porquitos,
cansados já não obedeciam como habitualmente. Teriam que passar várias cercas
até chegarem à zona das malhadas, onde iriam pernoitar. Seria a primeira vez,
depois de tanto tempo que estes porquitos ficariam entre paredes.
As vacas viam-se como vultos
no escuro, remoendo a comida na boca, fazendo tocar um ou outro chocalho.
Fazia-se silêncio. Ordem dada por Filipe, para que os porquitos não se
espantassem e corresse tudo pelo melhor.
Beatriz divagava nos seus
pensamentos – ‘As vaquinhas parecem saber
destes movimentos de pessoas e animais. Estão tão quietas… tudo parece tão
perfeito e natural aqui…!’
Ainda Beatriz não tinha
terminado o pensamento, surge a luz de um candeeiro ao longe. Filipe dirige-se
à luz e cumprimenta a pessoa. Beatriz, Antónia e Senhorinha ficam para trás,
vigiando os porquinhos.
A luz do candeeiro começa a
afastar-se e Filipe faz sinal para se avançar e seguir a luz. A pouca
iluminação permitia ver-se o céu cheio de estrelas. Enquanto Beatriz se perdia
nos pensamentos, os porquitos eram encaminhados para a malhada. Nesse momento
uma brisa suave acaricia o rosto de Beatriz desviando os seus cabelos do rosto.
Ela abre os braços e sorri, como que agradecendo ao seu amigo Vento, por tudo
ter corrido bem. Por uns breves instantes sente-se em ‘casa’ e corre de seguida
para junto de sua irmã.
O Sr Guita esperava-os à porta
da malhada, dando instruções a Filipe, como deveria acomodar todos os porquitos
nas várias pocilgas criadas para o efeito. Tudo parecia demasiado organizado
para Beatriz. De repente, uma espécie de sombra cai sobre a sua mente, quando
começa a ver que estavam a separar os porquitos.
Beatriz corre para junto de
sua mãe, que tratava de arrumar todas as coisas que transportaram durante a
jornada, e diz:
- ‘Mamã, o que está a acontecer? Os porquitos vão ficar tristes por
ficarem separados… É só para passar a noite, certo? E o salta-pocinhas, como
vai conseguir dormir separado da sua amiga patuda!?’
-
Minha querida filha - responde senhorinha puxando-a para fora da
malhada – tudo na vida tem um princípio e
um fim. Os porquinhos foram criados para este momento. Este é o seu destino. A
partir de agora viverão nestas pocilgas até serem vendidos…’
Com os olhos cheios de água,
quase a chorar, Beatriz responde à mãe:
-
Mamã, não posso acreditar que a felicidade dos porquinhos acabe aqui. Que se
passará a seguir? O que vamos fazer depois de serem vendidos? Como vai ser com
o salta-pocinhas, também será vendido??
-
Bia sei que te custa muito tudo isto, mas o salta-pocinhas é apenas um porco
igual aos outros e terá o mesmo destino dos outros, minha filha.
Beatriz desata a chorar e
corre afastando-se de sua mãe. Senta-se numa pequena pedra e põe a sua cara sob
os joelhos chorando sem parar.
Senhorinha reconhece naquela
atitude um pouco daquilo que ela própria viveu quando tinha a idade de Beatriz,
quando percebeu que nem tudo era perfeito como ela desejava. Então, mantendo-se
afastada de Beatriz deu-lhe espaço e tempo para que ela processasse tudo.
Beatriz levanta a cabeça e
olha as estrelas do céu. A patuda, amiga do salta-pocinhas, aproxima-se e
começa a lamber o rosto de Beatriz, confortando-a. Beatriz abraça-a e chora
compulsivamente mais uma vez. Entretanto sente-se tocada no
ombro e reage, afastando o ombro da mão, pensando que fosse a sua irmã dizendo:
- ‘Deixa-me! Não quero estar com ninguém. Não quero falar com ninguém!...’
-
‘Olá!’
Nesse instante Beatriz percebe
que não se trata da voz da sua irmã. A voz é de um rapaz! Beatriz enxuga as
lágrimas, meio envergonhada e levanta o olhar procurando no escuro e na pouca
iluminação que o candeeiro a petróleo dava, o rosto daquela voz.
-
‘Olá!’ – responde Beatriz
-
Posso sentar-me ao teu lado?
-
Podes… mas quem és tu?
-
Sou o Zé, o filho do Guita. A tua mãe pediu-me que te viesse buscar para vos
mostrarmos onde ficarão a dormir.
Beatriz pega no candeeiro e
aproxima-o do rosto do rapaz, confirmando que aquele era o mesmo rapaz da
galinha.
-
Vives aqui? – pergunta Beatriz.
-
Sim. Vivo aqui a maior parte do tempo. Porque estás triste?
Beatriz demora a responder e
Zé diz-lhe:
-‘Se não quiseres responder, não respondas, mas temos de ir para dentro
de casa!’
Após uns minutos de silêncio,
Beatriz responde:
- ‘Estou triste porque os porquinhos vão ficar separados uns dos outros.
Estou triste porque o porquinho, amigo da patuda, vai separar-se dela… e tenho
medo que lhes aconteça alguma coisa de mal…’
-
Eu também fiquei triste quando soube que os bezerros, filhos das vacas, eram
separados muito cedo das suas mães. Mas fui-me habituando a isso. Percebi que,
sem todo este movimento de animais, não poderíamos viver aqui… e nem tínhamos comida
na mesa…
-
Pois… eu sei que viver no campo como nós vivíamos era difícil e por vezes
tínhamos algumas dificuldades, mas éramos felizes nessa vida simples e livre.
Tinha muitos amigos com quem brincar… muitas coisas que me faziam sentir feliz.
-
E agora vais ter na mesma, vais ver! - responde Zé, encorajando
Beatriz, enquanto se levantam e encaminham para as casas.
Antes de chegarem às casas
onde os seus pais se encontravam, Zé faz sinal a Beatriz, puxando-a para a zona
das malhadas, onde estavam os porquinhos dizendo baixinho:
-Tive
uma ideia. Mostra-me onde está o salta-pocinhas.
Depois de alguma procura,
finalmente encontram o salta-pocinhas.
Zé diz: - ‘Vamos tirá-lo daqui. Sei de um sítio, que fica perto da casa onde vocês
vão dormir, onde ele pode ficar com a patuda, o que achas? Depois amanhã vemos
o que fazer…’
Beatriz sorriu e concordou com
a ideia. Perguntando de seguida:
-
E quando os nossos pais descobrirem? Que fazemos?
-
Eu digo ao meu pai, para guardar o salta-pocinhas para barrasco e assim pode
ficar sempre aqui. Precisamos de um porco-pai para haver outros porquinhos!!
Beatriz concordou. E por uns
breves instantes deixa-se inundar por um misto de emoções e sensações. Se por
lado se sentia triste por saber o destino dos porquinhos, sentia que a estava a
iniciar uma nova fase da sua vida e que tinha de aproveitar. Enquanto divaga
nos seus pensamentos e emoções, uma brisa suave toca o seu rosto. Beatriz sabia
que o seu amigo Vento iria protegê-la e guiá-la sempre. Sentia que, nunca iria
perder aquela ligação à vida, mas que tinha de aprender a aceitar o seu próprio
crescimento.
Vira-se para Zé, pegando na
pena que trazia no bolso e diz-lhe estendo a mão com a pena:
-
‘É para ti!’
-
Que é isso? Uma pena? – pergunta Zé.
-
Sim uma pena. Lembrei-me da galinha que tu levavas naquele dia. Lembrei-me que
poderia ser dela e isso ajudou-me na minha caminhada. Fica com ela. Guarda-a.
Faz uma pausa pensativa e
continua dizendo:
-
Já alguma vez pensaste que nós, pessoas, podemos ser como as penas que voam
livremente, parando aqui e acolá, sem nunca perderem a sua leveza? Já alguma
vez pensaste que, os animais, as plantas, as flores são como nós, respiram como
nós e sentem como nós? Já alguma vez pensaste que, aconteça o que acontecer
existe algo que nunca muda dentro de nós – o que sentimos e a forma como vemos
a vida e o mundo?
Zé olhava para Beatriz com ar de quem não estava a entender nada, permanecendo de mão estendida, meio hipnotizado com as palavras de Beatriz, enquanto esta conclui, olhando o céu estrelado:
-
Não ligues! O mais importante é estarmos aqui… agora!
Beatriz sai na direção da casa
onde se encontravam os seus pais e irmã. Zé fica um pouco mais atrás, meio
pensativo com tudo o que havia ouvido. Sabia que a sua vida, perto de Beatriz
nunca mais iria ser a mesma! FIM
E
a história da primeira fase da vida de Beatriz termina aqui.
O
salta-pocinhas tornou-se uma espécie de porco-cão, por acompanhar e crescer com
a patuda. Anos mais tarde sabemos que Zé e Beatriz casaram e formaram família.
Beatriz nunca perdeu a ligação à essência da vida. Até aos dias de hoje, ainda
fala com as plantas, com o vento e com as flores. Continua a respeitar e a
cuidar todas as formas de vida, como se da própria vida dela se tratasse.
Beatriz, apesar de mulher, será uma eterna criança sensível, procurando em cada
forma de vida o seu próprio reflexo e presença. ♥
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirOhh que lindo.
ResponderExcluirA história da tua mãe me faz lembrar a minha. Também dormi em malhadas, ao relento, tive todos esses animais e mais alguns. Revi-me em tudo.☺